sábado, 4 de julho de 2009

Vagabundos Iluminados


"Depois que pulei é que comecei a pensar
A vida é perfeita
A vida é ótima
É cheia de magia e beleza
Oportunidades e televisão
E tem aquilo que todo mundo deseja muito
Mas só sente depois que já não pode ter
Eu percebi isso derrepente
E acho que ninguém enxerga isso com clareza quando
Está vivo".

Wim Wenders nasceu na região de Rhury em 1945, na Alemanha. O país estava em ruínas pela guerra. Na juventude, viveu a esperança e frustração dos acontecimentos de maio de 68, ocorridos na Europa, especialmente na França e na Alemanha. Dessa época veio o seu apreço pelos problemas sociais, políticos e humanos. Sua vocação sempre foi à pintura. Em 1966 está em Paris e começa a gostar de cinema, encarando a possibilidade de se dedicar à crítica cinematográfica e a história do cinema. Já na década de 70 inicia sua carreira como realizador.

1. O Universo de Wenders
Os filmes de Wenders surgem, no fim dos anos 70, para acabar com a estagnação do cinema alemão do pós-guerra. Em sua temática percebemos uma crítica ao capitalismo, mas ao mesmo tempo, o cineasta alemão deixa passar nos seus filmes, uma certa euforia com as regalias proporcionadas pela sociedade de consumo e com o potencial das novas tecnologias, responsáveis, dentre outros fenômenos, pelo encurtamento das distâncias. Os personagens de Wim Wenders são consumidores entusiásticos de jogos eletrônicos, coca-cola e rock, mas também enfrentam terrível solidão e vazio existencial. O movimento lento da câmera, filmando imagens de personagens localizados em diversos lugares do mundo, é uma tentativa de representar um falso movimento do ser humano.
Para entendermos melhor a temática desse diretor, utilizarei a conceituação de Zigmund Baumam, que utiliza a metáfora dos turistas e vagabundos para ilustrar quem são as vítimas e os heróis da pós-modernidade, quem são os que apenas vêem as novidades como espetáculo, e aqueles que escolhem a vida que vão viver.
Em uma sociedade marcada por um tempo/espaço flexível, em constante mutação, o que vale é a habilidade de se mover. O espaço deixa de ser um obstáculo nesta nova sociedade em que a distância parece não importar muito. Para o autor, somos viajantes, mesmo quando parados, nos movemos pelos canais de Tv e através da web.
Os turistas são aqueles que não se fixam em lugar nenhum, estão à procura de novas emoções, novos caminhos e lugares. Fixam-se em tempo de realizarem seus sonhos, suas fantasias, seus desejos de consumo, enfim, seu estilo de vida. A peculiaridade da vida do turista é estar sempre em movimento, nunca chegar. Ele busca o desejo, que nunca é alcançado, sempre renovado. Já os vagabundos se movem por não serem aceitos, são obrigados a se mover pela necessidade de sobrevivência. Plagiando Bauman “São luas escuras que refletem o brilho de sóis brilhantes; são os restos do mundo que se dedicaram aos serviços dos turistas”.
É assim que Wim constrói seus personagens, com características nômades, do andante, do vagabundo. Em “Hotel de Um Milhão” (2000), o diretor busca o mundo suburbano, de homens que estão à margem, o universo da rua e o desapego. No filme, um de seus personagens, num dado momento fala “O mundo estava rápido naquela noite, e eu só queria poder me agarrar e fazer parte dele”. Esse é o vagabundo, que tenta se inserir no mundo e não consegue, tenta fazer parte dele.
Uma das alegorias que mais fascina Wim Wenders é a do anjo, utilizado para representar a capacidade que o cinema tem de fazer visível o que nossos olhos não enxergam naturalmente. Em “Asas do Desejo”, os anjos são a metáfora da figura do flâneur, encarnado por Baudelaire, o homem que anda pelo avesso da cidade, que foi transformada pelas forças do capital, que se entrega à contemplação e à reflexão das largas avenidas que brotaram junto com os edifícios e as multidões. Os anjos de Wenders são testemunhas da pequenez e da imensidão das criaturas que contemplam.
Outro flâneur de Wim Wenders é o personagem mudo de “Paris, Texas”. O homem vaga pelo deserto em busca do amor perdido. Guia-se por um nome de cidade. Vaga sem nenhuma chance de encontrar o que procura. O filme é um exercício de melancolia inesquecível que questiona os limites da identidade humana.
Com os filmes desse diretor vamos ao encontro de nós mesmo. Deixamos, durante o espaço/tempo fílmico, de ser o flâneur conformado com o olhar infinito e começamos a olhar para o lado, para os “vagabundos” do mundo moderno. E descobrimos quem são e como vivem.

2. Durante a captação
Toda ação em qualquer roteiro se insere numa atmosfera que dá o colorido geral do filme. Essa atmosfera deve constantemente impregnar o filme inteiro, do começo ao fim. Wim Wenders é um grande criador de ambientes, almas e sonhos, que vão se tecendo lentamente, de forma viva, doce, dolorosa, que nos envolve completamente. Sentimos a alma dos seus personagens em cada plano, nos movimentos de câmera, nas seqüências e na textura da imagem.
Em “Hotel de um milhão”, o filme é permeado por loucos e mendigos. A locação permite que tomemos conhecimento do interior dos personagens que habitam o Hotel. A iluminação escura, os planos à noite, na rua, a paisagem vista da janela trazem um ambiente carregado, subitamente escuro, assustador. E como fuga, a ambientação do quarto do personagem principal, Tom. Quando conhecemos o quarto de Tom, entendemos a sua alma, inocente, desequilibrada, pura.
Já em “Paris, Texas”, Wenders e seu diretor de fotografia, Robbie Muller, capturam a sensação de solidão que envolve o personagem no Texas, através das belas paisagens, quase sempre inundadas de luz. Travis, o protagonista é um solitário que passou 4 anos da sua vida buscando um amor. Seu percurso silencioso varre a imensidão do deserto, ora caminhando sem rumo, ora ao infinito sobre uma linha de comboio desaparecendo do largo horizonte.
“Asas do desejo” é uma tentativa de resgate da harmonia perdida, os anjos da pós-modernidade são o sofrido olhar diante da decadência urbana de Berlim. Imagens frias e sóbrias. O olhar do anjo sobre a cidade, sempre do alto, as luzes acesas e a solidão. Wenders explora muito bem os vôos dos anjos, mostrando toda a sua habilidade de lidar com movimentos de câmera e sua maneira de filmar contornando os atores como se mostrasse uma escultura em alguns travellings de tirar o fôlego.
Tomadas longas e externas, ambientando o espectador com o universo fílmico. Câmeras paradas, uma fotografia impecável, roteiro de reflexão crítica (sobre a família, a televisão, a repressão policial, o governo e o poder econômico que fazem dos cidadãos seres excluídos e marginalizados). Outro ponto importante na obra desse cineasta é a cidade. A rua, o olhar do homem para esse amontoado de prédios, de luzes e de solidão.
A caracterização dos personagens é perfeita, em sintonia com o figurino, o cabelo e suas expressões. São homens desajustados, excluídos, descritos com um estilo naturalista, mas essa linguagem também se alterna com elementos poéticos. Tipos exóticos, diferentes e viciados, que vivem sua individualidade e sua marginalidade.
3. Pós Produção

Falar do Cinema de Wim Wenders é sempre falar em uma excelente escolha musical. A trilha reforça certos momentos da história que é cinestésica, por natureza, ela envolve e embebe a alma. Em “Paris, Texas”, Ry Cooder nos embala com uma trilha que pontua o filme cena a cena. Seus filmes são conduzidos e marcados pelo somo mesmo acontece com “Hotel de um milhão”.
A montagem do filme privilegia o psicológico do espectador, salvo exceções. Nos longas de Wenders, os acontecimentos são internos. Envolvidos pelo filme, somos carregados para dentro dele. Vemos tudo com se fosse do interior e estamos rodeados pelos personagens.
Outro ponto a destacar em sua obra, foi à entrada do digital. Em “Hotel de um Milhão” e “Buena Vista Social Club”, a edição foi feita em AVID.
A beleza desse diretor aparece na abstração, longe da intenção de compreendê-lo, distante da prisão dos diálogos, somos presos por sua linguagem, em como ele sabe escrever bem, com imagens. O roteiro suga, a produção envolve e a montagem prende.
Seus filmes são distribuídos e vistos por todo o mundo, embora este, não seja um cineasta popular. Gostando ou não de sua temática, é indispensável de se ver.

Edifico Máster

Sei que o filme já foi lançado há bastante tempo, Coutinho já fez outros filmes tão bons quanto este. Mas foi com Edificio Máster que aprendi a gostar de documentário e percebi o que queria fazer: observar a vida e contar histórias...

O filme começa com a equipe do documentário entrando no prédio, e sendo gravada pela câmera de vigilância. As três primeiras entrevistas, Vera, o síndico Sérgio e Esther, relatam a vida do prédio, chamando o espectador a conhecer o que vai ser filmado. Coutinho optou por montar o filme respeitando a ordem das entrevistas.
O Edifício master deixava para trás um passado “condenável”, repleto de histórias envolvendo prostitutas, travestis, policiais, drogas e vinha se transformando em um prédio “familiar”. (LINS, 2003)
Coutinho, neste filme, opta por representar a classe média, personagens comuns, sem aparente atrativo. Assim, pessoas reais contam fragmentos de sua existência, a confissão se torna à narrativa do filme. Como a banda que veio do Sul do país, tentar a vida em São Paulo; Roberto que se transforma em camelo por falta de emprego; Antonio Carlos que se emociona com o reconhecimento do Patrão com o seu trabalho. Estes são alguns dos recortes do cotidiano que se apresentam no filme, provando que pessoas comuns podem se tornar personagens interessantes.
O Diretor permite que seus personagens entrem em contradição, mostrando o conflito interno do ser humano. Carlos e Maria Regina falam da dificuldade do relacionamento, do amor que se encerra, terminam sua narração dizendo “nós não prestamos, mas nos amamos”. Alessandra se contradiz durante a conversa “esse mundo aqui é muito ruim, eu sofro muito, quando eu morrer serei feliz, mas eu não quero morrer não, não quero mesmo”.
Seus personagens dão exemplos de vida, confessam seus segredos, emoções, pensamentos, frustrações, receios, misérias, e nos emocionamos com estas histórias e nos identificamos com elas.
Master é um tratado sobre a solidão humana, e como as pessoas são sobreviventes a ela. A fuga, pela poesia, canto ou pintura, é um revelador dos mecanismos utilizados, pelos entrevistados, para se libertarem da vida que levam.
Através do conhecimento do mundo dos personagens, que vão se revelando diante do espectador, percebemos a fragmentação do homem moderno, seu não encaixe, sua não inserção, a disputa entre ele e o mundo, com seu tempo diluído em formas e sentidos impregnados de vazio.
“Lá tem escassez, não miséria, e a violência é muito mais simbólica. Você lida com a substância da vida das pessoas, ou o que restou delas”.(Lins, 2003).
Uma das cenas mais emocionantes do filme é quando Srº Henrique canta “My Way” de Frank Sinatra, para a câmera. O personagem que já morou nos Estados Unidos, tem três filhos bem-sucedidos na vida, hoje mora sozinho, e para espantar a solidão escuta a canção dois sábados por mês.
Master nos proporciona presenciar, no filme, as contradições do mundo moderno: a solidão em meio ao tumulto, ao caos urbano; o anonimato e a visibilidade; a reserva e a impossibilidade de privacidade. Daniela, professora de Inglês, um dos depoimentos mais fortes do filme, fala sobre estas questões. “São os olhares que colocam a selva de pedra como um lugar em que há muita paranóia, muita invasão, em que de alguma forma parece que estamos sempre sendo assistidos”.
O ultimo depoimento é de uma jovem que pergunta a Coutinho “o senhor é quem?”, e diz que é muito difícil pensar o que vai ser da vida. O documentário acaba com a garota dizendo que não se imagina, na verdade, nada. Coutinho, com a ultima entrevista, finaliza o filme ressaltando que é impossível concluir a vida de um personagem, uma história e o próprio documentário.

o filme fala de escolhas, de solidão e prova que qualquer vida pode ser interessante, basta olharmos pra ela.

sexta-feira, 3 de julho de 2009

vertov



O cinema-olho de Dziga Vertov

O cinema-olho de Vertov é acima de tudo um método para captar o cotidiano num sentido de urgência, para absorver a realidade dos fatos e transformá-los aos olhos do espectador, para que eles se adequem a um novo princípio de sociedade, acoplando-se aos ideais da revolução socialista. Essa captação da realidade deve acontecer por meio de um processo mecânico, intermediado por uma máquina, através do olho mecânico da câmera. Para Vertov, a introdução da câmera na realidade a ser filmada não deve alterar a própria composição dessa realidade. O material filmado seria chamado de cine-fatos. A câmera, portanto, filmaria os fatos cotidianos assim como eles se apresentam, sem qualquer intervenção externa aos elementos de seu estado natural, num sentido de urgência e especialmente de imprevisto. Para a teoria de Vertov, há uma necessidade do registro das imagens sem que o processo de filmagens interfira no comportamento natural dessa realidade, isto é, os fatos do cotidiano precisam ser filmados sem que haja a consciência da existência de uma filmagem, o que poderia destruir a espontaneidade do registro. Por isso, Vertov era contra a maioria dos filmes russos da época, rotulados por ele de "filmes encenados". Para Vertov, a encenação seria um elemento artificial imposto à natureza intrínseca daquela realidade como ela se apresentaria naturalmente a nós. Esse elemento artificial destruiria a autenticidade do registro, não podendo mais ser chamado de cine-fato.

Pelo fato de Vertov ser essencialmente um documentarista, sua teoria guarda um profundo interesse pela noção de verdade. A verdade, para Vertov, não estaria imbuída nos fotogramas dos cine-fatos. Estes seriam apenas a primeira parte, a metéria-prima do legítimo processo de busca da verdade. A função do cineasta-engenheiro é exatamente reorganizar os cine-fatos, usando complexas associações rítmicas e espaciais, para construir uma verdade. Essa construção, portanto, só poderá ser obtida após o processo de montagem. Através do estudo do material coletado, pode-se realizar uma reorganição dos fatos fílmicos de modo a revelar para o espectador a estrutura intrínseca da realidade visível. Como afirma Gervaiseau (1999), Vertov usa procedimentos e métodos "para tornar visível o invisível, e autêntico o interpretado, graças ao cine-verdade: a verdade obtida pelos meios cinematográficos".

A montagem é fundamental para Vertov por meio da aplicação de sua teoria dos intervalos. Mais que o fotograma em si, o impacto na percepção do espectador é intensificado na relação de um fotograma com o próximo. Devido ao fenômeno da persistência da visão, o espectador permanece com a imagem de um fotograma em seu sistema cognitivo mesmo segundos depois que este já não mais está exposto na tela. Por isso, o efeito perceptivo está nos intervalos entre os fotogramas, possíveis em decorrência do corte. Através de um ilusão estroboscópica, haverá uma sobreimpressão da imagem anteior e o novo fotograma, que o sucede, agora exposto na tela. Essa impressão de súbita simultaneidade, passando uma ideía de movimento, é chamado de "efeito phi", liberando uma energia cinestésica através de um efeito puramente ótico. Vertov, através da montagem, utiliza esse efeito para diferentes funções. Petric ressalta que o efeito estroboscópico geralmente possui um efeito hipnótico, que provoca um efeito de irritação e agressivo para o espectador, ao contrário do processo de identificação típico da narrativa clássica. Esse choque, causando uma situação de desconforto, seria ideal para provocar um sentimento de revolta, claramente adequado à ânsia revolucionária.

Se Vertov é mais conhecido pela originalidade da composição das relações entre planos, não deve ser negligenciado que mesmo no interior dos planos há uma série de relações rítmicas. O cinema de Vertov não se restringe apenas ao aspecto interplano, mas também intraplano. Vertov utiliza movimentos no interior do plano para compor um balé rítmico de movimentos, assim como associações entre formas (esferas, cubos, linhas, etc.) e movimentos de câmera variados.



Ontologia e Epistemologia

A teoria de Vertov é no fundo uma tentativa de resolução de um conflito entre construção e verdade. Por um lado, Vertov está ligado ao construtivismo, pela necessidade das máquinas e de uma construção por meio da tecnologia para se atingir um progresso. Essa questão é especialmente forte na URSS de então, quase feudal pelo rigor do tradicionalista regime czarista, enquanto as potências ocidentais se encontravam num estágio avançado de industrialização. Por outro, por sua tendência documentarista, Vertov busca uma verdade, que não deve sofrer manipulações que destruam sua autenticidade. Ademais, a teoria de Vertov deveria ser dialética em busca de uma revolução, de uma consciência por parte dos espectadores, e de uma visão transformada do universo fílmico para ser basicamente transformadora.

Desse ponto de vista, o cinema-verdade de Vertov está situado entre Eisenstein e Bazin. Para Eisenstein, é através da síntese entre dois planos surgida com a montagem, ou melhor, da colisão entre dois planos independentes, que o conflito dramático seria acentuado aos olhos do espectador. Por outro lado, Bazin defende a fotografia como um simulacro da realidade, ou melhor, a "ontologia da imagem fotográfica". O meio-termo de Vertov está em aceitar a apreensão da realidade na fotografia através dos cine-fatos e ao mesmo tempo dizer que a verdade só estará estabelecida a partir da construção por meio da montagem.

Enquanto Bazin defende a ontologia da fotografia, Vertov prefere a ontologia da montagem. Os cine-fatos por si só são insuficientes para se alcançar alguma verdade. Mas desse modo, Vertov esbarra em alguns aspectos contraditórios. Em primeiro lugar, a presença da câmera inevitavelmente modifica a natureza intrínseca da realidade. Em Entusiasmo, por exemplo, algumas pessoas olham de soslaio para a câmera, sugerindo que sabem de sua presença filmando os fatos. Em segundo lugar, após a reordenação dos fatos fílmicos na montagem, não existe o acesso à verdade, mas sim a uma verdade. Essa verdade é de fato modelada segundo os propósitos revolucionários de Vertov. Como o próprio Vertov admite, se os fatos fílmicos fossem organizados de outro modo, a interação entre as imagens poderia produzir resultados diferentes. A manipulação do material fílmico pós-filmagem denota a quebra do sentido de verdade, notadamente contraditória a uma idéia de construção.

De fato, a idéia de ontologia da montagem de Vertov só pode ser defendida se tivermos em mente que todo o processo do cinema para Vertov se subordina aos princípios de uma nova sociedade socialista. Isto é, o cinema de Vertov está intimamente relacionado à criação de uma consciência do espectador, que o lançará ao encontro dos ideais revolucionários. Os fatos fílmicos são portanto reorganizados com um propósito: o conhecimento da precária situação russa antes da revolução e a consciência da necessidade de uma revolução. Portanto, a ontologia da imagem de Vertov só se sustenta quando pensamos que, no fundo, ela é uma epistemologia, já que a energia cinestésica advinda dos ritmos inter e intraplanos provoca no espectador uma revelação, que mais do que propor uma conscientização sobre a situação russa, deve, acima de tudo, impulsioná-lo para a ação.



4 - Contradições do Construtivismo

Entusiasmo (1929), primeiro filme falado de Vertov, é a obra que melhor espelha o projeto de Vertov para a construção de uma nova URSS. O filme mostra a ruptura do antigo regime, com a destruição de uma Igreja, e a instalação de uma grande fábrica, onde o proletariado unido construirá uma nova sociedade. Esse filme, que resume o projeto russo e a influência do construtivismo, mesmo com simplificações naturais, é exemplar por exibir algumas das contradições desse projeto.

Na segunda parte de Entusiasmo, vemos o grupo de trabalhadores operando gigantescas máquinas, provavelmente numa mina de carvão, divididos em grupos segundo a sua função na mina. Os trabalhadores aparecem sempre ao lado das máquinas, ou caminhando em direção à mina. São enquadrados quase sempre em planos gerais ou planos médios, de forma a enquadrar também seu poderoso instrumento de trabalho. Não há closes que identifiquem o individualismo de trabalhadores. Sào uma massa anônima ao lado de suas máquinas.

De um certo ponto de vista, a produção da mina em Entusiasmo não é muito diferente de um processo fordista de produção. Em um plano de Entusiasmo, há um grupo de trabalhadores ritmicamente batendo seus martelos ao chão. Eles são os operários da linha de produção. Decerto que o construtivismo e o fordismo possuíam objetivos diametralmente opostos, mas em comum ambos nutriam uma grande admiração pelas máquinas como símbolo do progresso. A revolução forçou a necessidade de a URSS entrar num processo de industrialização. A própria NEP assumia as constradições de seu projeto. A verdade é que os trabalhadores continuaram afastados de seu meio de produção, principal crítica marxista ao capitalismo. A alienação dos trabalhadores do processo produtivo, simbolizado pela fábrica de alfinetes de Adam Smith, é no fundo intensificada pelas gigantescas máquinas mostradas em Entusiasmo.

Sejam as grandes máquinas ou a estrutura kafkiana da burocracia estatal, a consecução do projeto russo em sua totalidade esbarrava em limites extremos. O próprio filme de Vertov já demonstra a ambigüidade do projeto. Como o próprio Vertov dizia que sua teoria cinematográfica era acima de tudo um meio para um projeto revolucionário, mesmo de passagem deve ser ressaltada a ingenuidade de sua visão, e as contradições que tornam sua teoria típica do projeto socialista de então.

Primeiras considerações

este é um espaço para a discussão e aproximação de realizadores independentes que buscam contar estórias e que encontram dificuldades em sua realização.

Para começar, a grande questão!
o que é fazer documentários?
Existe mesmo uma maneira de se fazer documentários?
Seja na tradição documentarista que remonta da década de 30, ou no cinema ficcional de vanguarda construtivista, nas inovações formais trazidas pelo cinema direto/verdade ou ainda nas experiências em primeira pessoa trazidas pelo século XX, sempre nos esbarramos em uma mesma questão. Por que fazemos documentários? Pensemos nas imagens fascinantes e pertubardoras com as quais nos deparamos todos os dias, imagens de outros corpos, seus sons, preferências, suas emoções, seus gestos e ações. Pensemos no transcorrer da vida passando. Ao observarmos essas "realidades",percebemos um pouco de nós mesmos.
Descobrir a verdade documental do outro, a sua história pode ser uma descoberta da nossa própria existência. Como mediar esse discurso?

Produzir documentários é encontrar maneiras novas e individuais de contar histórias. Discutir a presença do “real”, nestes filmes, implica refletir sobre a relação existente entre o diretor, a obra, o objeto a ser documentado e a relação desta com o espectador. Ao falarmos do conceito de realidade, é importante ressaltar a complexidade da sua definição. A fim de pensarmos nessas questões, é imperativo assumirmos que filmes são olhares, pontos de vista sobre a realidade, que sendo subjetiva, pode gerar muitas outras interpretações.
Há uma inegável ingenuidade por parte dos pioneiros do documentário em afirmar idéias como objetividade e não-interferência, fazendo-nos crer que o mundo equivale a sua representação. Já em plenos anos 90, nossos olhos cinematográficos trabalham com fragmentos e recortes de uma determinada realidade, salientando que esse conceito é relativizado. Com isso, busca-se uma reflexão e compreensão da questão abordada. Ao relacionar a história contada na tela com seu contexto histórico, econômico, político, social e cultural, o espectador torna-se produtor de significados. Também não podemos nos enganar a ponto de acharmos que, com esse modelo, temos um acesso maior à veracidade dos fatos. Segundo o documentarista Geraldo Sarno “O que o documentário documenta com veracidade é a minha maneira de documentar”.
O que se percebe, no cinema atual, é a exposição do método. O espectador começa a perceber quais são as regras do jogo e como a história é construída. Mas nem sempre foi assim. Para tratarmos da relação do fato, do recorte do diretor e da recepção do espectador, pensaremos como ela se processou a partir da década de 60 e como se processa atualmente.
Jean-Claude Bernadet cunhou o termo “modelo sociológico” que é relacionado à voz do narrador e à imposição de um discurso externo à realidade retratada. O autor defende que o cineasta é refém da linguagem cinematográfica que utiliza e, com isso, acaba conduzindo o documentário para a comprovação daquilo que pensa em relação ao tema abordado. Usamos a linguagem e somos usados por ela, sendo assim, nos tornamos mediadores, ao utilizarmos o discurso cinematográfico com o intuito de atribuirmos significados à realidade.
Diferente da perspectiva atual em que o entrevistado também é possuidor do saber, nos filmes da década de 60, os personagens serviam como amostragem para comprovar uma tese. Eram a “voz da experiência” , baseada em seu cotidiano e nas suas escolhas. Na maioria das vezes, a entrevista servia para comprovar o que a voz em off dizia, geralmente, oferecendo dados estatísticos, conclusões, generalizações, sempre em terceira pessoa. Essa Voz é conhecida como a “voz do saber” , sempre gravada em estúdio, não desvendando seu dono, respeitando a gramática e não havendo ruído ambiente. Como diz Jean-Claude, “Dissolve o individuo em estatísticas e diz dos entrevistados, coisas que eles não sabem a seu respeito”.
O inicio da década de 70 foi marcado pela dispersão de cineastas integrantes do Cinema Novo. A repressão política pós Ato Institucional nº5, em 1968, a criação da Embrafilmes, em 1969, as novas demandas do mercado cultural e o acirramento dos debates estéticos compuseram um novo quadro, em que os cineastas migraram para as emissoras de TV, desenvolvendo, assim, uma nova linguagem e uma nova roupagem para os filmes documentais. Esses cineastas, que agora trabalhavam para as empresas comunicacionais, principalmente a Globo, começaram a se enquadrar em um novo padrão estético, seguindo normas na produção e divulgação de suas reportagens.
Nos governos de Médici (1969-1974) e Geisel (1974-1979) havia uma tentativa de unificação nacional por intermédio da cultura. Tal política enxergava na televisão uma grande possibilidade de integração através da linguagem, do consumo e da ideologia.
No fim da década de 70 e inicio de 80, a realização de documentários no Brasil se desenvolveu na direção de relatar o renascimento dos movimentos populares, refletindo sobre a abertura política pela qual o país estava passando. O filme “Cabra Marcado para Morrer”, realizado em 1984, dirigido por Eduardo Coutinho, foi um marco no documentarismo brasileiro, ao mostrar uma ruptura no historicismo presente em documentários anteriores. O filme relata dois momentos (1964 e 1984) e duas histórias. Um resgate do passado, a situação dos anos 60, e um embasamento no futuro, uma análise dos anos 80.
O filme também inaugura uma nova tendência nos filmes documentais brasileiros: O antiilusionismo. A obra se mostra como produto, desvendando o processo de produção. O modo reflexivo assimila o discurso e o fragmento de realidade a ser ressaltado. O que antes estava implícito, agora é assumido, o cineasta se assume como fabricante de significados, produzindo discursos cinematográficos.
Estes documentários Auto-Reflexivos misturam trechos observacionais, letreiros, entrevistas e comentários em voz off, tornando explícito aquilo que tem sempre estado implícito: documentários sempre foram formas de representação, nunca janelas transparentes para a “realidade”; o cineasta sempre foi um participante-testemunha e um ativo fabricante de significados, um produtor de discurso cinematográfico e não um repórter neutro e onisciente da verdade das coisas.(NICHOLS, em Rosenthal, 1988, p. 48-63)

O modo reflexivo faz uma incursão em si mesmo, problematizando sua própria limitação. O teórico Silvio Da Rim assegura que “o próprio filme afirma-se como fato no domínio da linguagem”. No Brasil, O documentário atual se volta como questão, mas não apenas com a dicotomia de verdade e mentira, e sim em relação a sua linguagem, ao seu discurso e aos detentores da voz, ou vozes. Enfim, um outro olhar se constrói, não apenas na busca pelo realismo narrativo ou uma naturalidade documental, mas num discurso atrelado à amarras históricas e sociais.
ele não preexiste a si mesmo, retido por algum obstáculo aos primeiros contornos da luz, mas existe sob condições positivas de um feixe complexo de relações (FOUCAULT, em o ato fotográfico, 1995, p.51)

A Coesão interna dos primeiros filmes documentais no Brasil atesta um argumento que signifique o real, sendo assim, as seqüências e o discurso são adaptados para esse fim. Os novos documentários, embora também apresentem um argumento, permitem dissonantes vozes, que legítimas, permeiam o real.